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OPINIÃO – Colunista aborda tendência de comportamento nas redes sociais em tempos de quarentena

“No Brasil só classe média alta e alta podem fazer quarentena. Só eles têm reserva financeira”, aponta Luiz Felipe Pondé. Para ele, a sociedade não vai mudar comportamento após a crise

Luiz Felipe Pondé

O colunista Luiz Felipe Pondé, da Folha de São Paulo, publicou, nessa segunda-feira (13), um texto em que aborda a tendência de comportamento percebida na internet durante a quarentena imposta pelo novo coronavírus. Para ele, só quem têm condições de estarem realmente num isolamento são os “ricos e famosos”, uma vez que possuem reservas financeiras para suprir o período, além do fato de estarem aproveitando este tempo para ganhar mais dinheiro por meio de marketing nas redes sociais.

Na opinião de Pondé, o isolamento aumentará a pobreza no país e, embora os influenciadores digitais estejam pregando a solidariedade nesse momento de crise, o comportamento da população, de modo geral, não vai mudar após o fim da pandemia. As principais justificativas são a vaidade, o oportunismo e o marketing pessoal, que perpetuam por gerações e deixam o mundo cada vez mais competitivo.

Além disso, ele também menciona a dificuldade das relações interpessoais, no sentido de que os mecanismos rígidos de controle do isolamento, hoje defendido por muitos, tornam a sociedade mais remota, mais solitária, o que faz com que a segurança prevaleça à liberdade.

Confira o texto na íntegra:

Pobreza no Brasil faz da quarentena uma tendência dos ricos e famosos

Ilustração de Ricardo Cammarota para a coluna de Luiz Felipe Pondé/Folha de São Paulo

A quarentena virou tendência de comportamento. O chique é estar de quarentena brincando de aspirador de pó, conversando com plantas, cozinhando brócolis, fazendo ioga e lendo russos. Não fazer quarentena é coisa de pobre, bolsonarista, ignorante e fumante. De repente, o chique é posar de igualdade social. Imitar as empregadas enquanto faz live. Peste “instagramworthy” (peste que vale uma live).

É claro que isso passa ao largo do desespero real e vira uma espécie de gourmetização da peste, criando algo como um surto psicodélico em escala social.

De onde esse povo inteligente tirou a ideia de que o mundo vai mudar depois da peste? A primeira prova de que não vai mudar nada é que os inteligentinhos coronials já estão em ação.

Nunca vi tanto self-marketing se vendendo como se fora amor à vida. E disseram que o mundo não ia voltar ao normal? Já voltou, em parte. A vaidade, o oportunismo, o marketing de comportamento, o mercado dos horrores afetivos, as feministas dizendo que dominarão o mundo, tudo aí, pra quem quiser ver. Alguém já provou que vírus só existe em sociedades patriarcais e carnívoras? Logo coletivos de ciências sociais o farão. Enfim, o ridículo voltou às ruas.

Olhemos de mais perto a sintomatologia. Sempre achei a disciplina de clínica médica fascinante: uma espécie de trabalho de detetive mergulhado em sinais e sintomas pra identificar possíveis causas.

Um dos sintomas do corona no plano cognitivo e intelectual é o oportunismo do horror. Esse já identificamos. Vamos adiante. Outro, também no plano das funções cognitivas, é achar que a humanidade vai mudar depois da peste.

Uma possível explicação para esse sintoma talvez seja o desespero e o tédio que a quarentena gera em nós. É compreensível. Mas a humanidade já passou por inúmeras pestes piores que esta e nunca mudou. Esta é, apenas, a primeira “instagramworthy”.

Depois da espanhola e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão.

A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia.

A epidemia de utopias fala coisas como: vamos respeitar mais os mais humildes. Seremos mais solidários — durante a epidemia, muitos, sim, com certeza, ainda bem, mas passada a peste, a maioria voltará a ser como sempre foi. Os humanistas de quarentena voltarão a fazer lives dos hotéis caros que frequentam. Seremos menos consumistas? Vida mais simples? Como assim? Se até pra escolher comida somos o povo mais chato da história. Um estoicismo gourmet?

O mundo estará mais pobre, provavelmente. Os pobres mais pobres, menos dinheiro circulando. A economia será uma ciência ainda mais triste. Isso dará um baque no debate Keynes x Hayek, em favor do primeiro, grosso modo. Mais gasto do Estado — já está acontecendo. Passaremos por um momento parecido com a reconstrução da economia da Europa pós-Segunda Guerra: foco em diminuição de tensões sociais, com razão. O Estado de bem-estar social nasceu desse foco.

O mundo será mais competitivo ainda, porque mais inseguro. Mecanismos de controle invasivo valorizados agora por tanta gente bacana poderão ganhar ares de maior segurança social e de saúde. A segurança dará de 7 x 1 na liberdade.

O mundo será mais remoto. Mundo remoto é mundo de solitários. As relações entre as pessoas já estão difíceis, agora o serão com as bênçãos dos coronials.

Encaremos os fatos: no Brasil só classe média alta e alta podem fazer quarentena. Só eles têm reserva financeira. A esmagadora maioria da população vai pedir esmola, seja do Estado, seja nas ruas. A pobreza no Brasil faz da quarenta uma tendência de comportamento dos ricos e famosos. Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que eles não comem bolo, já que não têm pão.

Luiz Felipe Pondé 13.04.2020

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